BAHIA!


Fui convidada à participar da 22ª bienal do livro, em SP. Por motivo de força maior, não pude comparecer ao evento para receber as congratulações. Concorri com doutores em Literatura, Direito, etc, com escritores profissionais, residentes no Brasil e no mundo. Com esse texto, fui escolhida para figurar o livro "Homenagem à Jorge Amado". Comecei a falar da Bahia do mesmo jeito que comecei à falar de Rafael Mendes, talvez... Talvez seja a minha consciência, ou talvez eu saiba que Rafael não podia ser outra coisa a não ser a própria Bahia. 

***


Eis que, no tardar da hora, fui tomada por uma incrível tristeza fina e doce. Podia-se ouvir, horas atrás, no meu quarto, som de oguns do candomblé. Melodia sincopada e viril. Ika adobale ae. Foi só chegar ao último capítulo do livro em meu colo, que os sons tornaram-se ensurdecedores. Ika adobale ae. Ika adobale ae. Ika adobale ae!
Mas, quanto mais altos eram os sons, mais emudecida eu ficava. De biquinho no canto de boca, fitava as últimas folhas do livro que me tirava o fôlego. A cor escarlate da capa envelhecida misturava-se ao suor e ao sangue que escapavam de minha testa. Nem Nanã, em seu santo amor, acalmaria a aflição do meu peito. Tal prazer estava por um fio de acabar. E depois que eu virar a última página, terminar a última linha... Estarei acabando um namoro de cinco dias. Jamais fui capaz de amar assim.
Os Olhos de Xangô eram capazes de brilhar na doce desesperança de perdurar eternamente em meu colo. E estava ali, dando suas últimas respiradas antes de a última folha acabar. Comecei, então, a ler devagar, decodificar lentamente letra por letra. Pulava as sílabas, uma a uma, e as voltava, na decadente ilusão de ter o livro e o prazer por mais alguns segundos. Cheirar a folha amarelada de tempo. Ter nas mãos a pura Salvador. Abraçá-la e agarrá-la.
Traduzi, dias antes, a saga de toda uma nação resumida em um só lugar: Bahia de todos os santos, de todos os oguns. Bahia de cheiro doce. Bahia do céu claro até ao entardecer. Por que quando cai a noite, logo na virada do Sol em Lua, Salvador cheira a dendê. Bahia escuta afoxé. Bahia joga capoeira. Eu sou Bahia e o Brasil inteiro também é. E fui mais Bahia quando o livro de capa vermelha caiu em minhas mãos.
Senti-me adoecer de febre doida quando cheguei ao último parágrafo. Dor de cabeça latente, taquicardia pesada, sudorese exacerbada. Dor aguda no peito. Fechei o livro só pra adiar seu fim. Foi ridículo, sei, mas a ilusão de tê-lo vivo por mais tempo era ainda doce. Tão doce quanto minha relação com Pedro Archanjo. Os sambas de roda agudos em minha mente ainda, três linhas e só.
Respirei fundo ao respingar da profunda coragem. Era o fim de um relacionamento sério! Enchida de tristeza e devoção, li os últimos caracteres do amor mais profundo. E... o fim chegou. Chorei. Esmurrei o ar enchida de misticismo e amores. Dor e prazeres. Todos os níveis de estranhas sensações. Era a Bahia encarnada dentro e fora de mim. Agora, o vácuo que o vazio trás.
Na confluência de identidades idênticas, ouvi dizer de amores. A igualdade racial, religiosa e social. No crespo cabelo de Pedro, encontrei encantos no balançar de todo corpo que é vindo da Bahia. O marchar do dia a dia. A ginga nivelada de fronte ao medo. A sabedoria simples de um povo misturado e singelo. Na fritura doce do acarajé, todo o amor do mundo. Houve só um nome pra escrever os milagres dessa tenda: Um amado, Amado Jorge.


CLARISSA DAMASCENO MELO


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